Eu e o Luciano somos arquitetos. Nos conhecemos no primeiro dia de aula
da faculdade: ele, vindo de capital, e eu do interior mesmo, São Carlos. Dois
meninos recém-chegados à Bauru para o primeiro dia de aula na nova cidade.
Comum nos cursos de Arquitetura, a sala tinha poucos meninos; mas logo já fui
com a cara dele - mesmo com ela toda pintada de guache, suado e com o cabelo
raspado. Passamos por toda a brincadeira do trote, sentei estrategicamente
ao lado dele na passagem do palitinho e, quando estávamos fazendo pedágio para
arrecadar dinheiro perguntei se ele por acaso não queria morar comigo. Contei
que meu primo também estava mudando para lá e que iríamos alugar uma casa
grande com mais gente. Ele deve ter me achado meio louco; não deu muita bola e
seguimos.
Passou um dia; no segundo dia ele veio falar comigo sobre isso de novo.
Disse que tinha pensado melhor, que podia ser uma boa ideia. Pois então: o
primeiro ano de faculdade foi assim – moramos numa casa grande com outros cinco
meninos. Uma típica república de interior: os meninos formavam uma banda (que
ensaiava em casa quase sempre), entra e sai de um monte de gente, aquela
bagunça que todo bixo sonha quando entra na faculdade. Por um ano estava bom!
Valeu a experiência, mudamos para um apartamento lá pertinho, de um quarto.
Éramos inseparáveis na faculdade: já fazíamos todos os trabalhos juntos,
eu (que sou de Câncer) fazia questão de cuidar dele, mas era só. Nunca havia
acontecido nada, até chegarmos ao terceiro ano de faculdade. De uma hora para
outra fiquei irritado e brigando muito com ele e com uma amiga nossa (fazíamos
os trabalhos quase todos juntos – éramos amigos e vizinhos de porta). Aí surgiu
uma oportunidade de intercâmbio com bolsa de estudos – não pensei duas vezes!
Enviei toda a documentação e fui chamado para uma entrevista; pena que entre o
envio e a ligação para agendar a tal conversa aconteceu um negócio meio que
importante. Pois é: meio sem sentido a gente começou a se aproximar de um jeito
diferente – passamos a assistir TV um no colo do outro, deixar a porta destrancada
quando estávamos no banho, passamos a dar boa noite com abraços bem apertados –
os dois provocando. Até que uma noite de jogo do Corinthians fomos dormir
quando ainda não havia terminado a partida, e nesse dia – não lembro bem o
porquê – deitei sem dar o tal “boa noite”. Logo que o jogo terminou os vizinhos
soltaram um monte de fogos por causa da vitória do Corinthians; aí a gente
acordou. Ele falou “última chance: não vem dar meu boa noite mesmo? ”. Aí foi a
deixa: levantei e dei um beijo – o primeiro dele em meninos. E desde então
começamos a namorar; vencemos o enjoo que deu no dia seguinte, o frio na
barriga de talvez estar jogando uma amizade fora, mas seguimos em frente. Pois
bem, aconteceu tudo isso e, de repente, uma ligação. E eu não tinha contado do
tal intercâmbio (até porque não imaginava que tinha chances, achei que não ia
dar em nada). Ele ficou bem bravo, mas logo me apoiou, me levou para entrevista
e tudo. Acabei selecionado e passamos seis meses longe.
Viajei tranquilo porque (me fiz de louco e) botei na cabeça que ele iria
me buscar, mesmo sem ter um puto na conta corrente. E não é que deu certo?
Nesse meio tempo o pai dele comentou que as irmãs haviam feito uma viagem
internacional aos quinze anos; perguntou se ele não queria aproveitar que o
amigo estava na Europa e viajar comigo. E foi assim: comemoramos o oitavo mês
de namoro em grande estilo, num mochilão bem intenso por um bando de países.
Foi incrível!
Voltamos, terminamos o quarto ano de faculdade e, no quinto ano,
mudaríamos de Bauru. Teríamos apenas uma matéria, não tinha muito sentido
continuar lá. Eu queria ir pra São Paulo estagiar, ele queria continuar no
interior, já que imaginou que voltando para a capital teria que morar com seus
pais novamente. Bem que eu tentei ficar no interior, mas não deu certo. No
final de janeiro de 2010 vim fazer uma entrevista; ele, que me levou para
entrevista, foi chamado para fazer também – lá, na hora mesmo – e fomos, os
dois, contratados. Começamos a árdua tarefa de procurar apartamento para morar
e, nesse meio tempo, ficamos morando na casa dos pais dele. Fui tratado como
filho mesmo, até mudarmos para um apartamento bem pequeno, na mesma rua dos
pais – que super apoiaram a saída do Luciano para continuar morando comigo.
Tempos depois minha mãe descobriu nosso namoro (não queria ver a cara dele
pintado de ouro), mudamos de emprego (cada um foi para uma empresa), crescemos
e o Luciano contou para os pais dele sobre a gente. O caos! Ficaram um tempão
sem falar comigo e, assim como pararam, também do nada me convidaram para um
Natal e tudo voltou a ser incrível.
Com esse turbilhão de acontecimentos e com os dois devidamente
“assumidos” começou a pairar aqui ideias de filho. Primeiro um, que tinha até
sugestão de nome: Cadu. Engraçado que, a partir do momento que assumimos nossa
vontade em sermos pais, mudou completamente nossa visão de rotina. Passamos a
imaginar – em cada passeio, viagem e até no dia a dia – como seria se tivesse
uma criança com a gente. A ideia foi crescendo, os amigos se empolgando e
assumimos nossa vontade de termos na verdade dois meninos, agora chamados
hipoteticamente de Cadu e Mathias.
Compramos um apartamento e quando estávamos para recebe-lo sentimos a
necessidade de marcarmos essa mudança de algum jeito. Nós que, tínhamos
assinado a União Estável no primeiro mês que pudermos fazê-lo, começamos a
pensar em fazer uma festa, chamar amigos e tal. Para variar a ideia cresceu e
em agosto de 2014 marcamos nosso casamento para o dia 08 de novembro! Correria,
mas nada desesperador. Faríamos algo simples: alguns amigos e familiares num
bar de um amigo nosso. Ele mesmo iria cuidar da música, comida e bebidas. E
chamaríamos um juiz de paz para realizar o casamento lá e termos, então, um
“cerimonial” para não parecer uma festa qualquer. Aí pedimos para todo mundo ir
de branco (já que não tinha noiva), os pais do Luciano ligaram para todos os
parente e amigos para contar do casamento e, no fim, apareceram mais pessoas do
que de fato convidamos! A festa foi bem legal, estava cheia; escrevemos,
juntos, um texto lindo para marcar o momento. Eu li o texto enquanto o Luciano
se acabava de chorar. E no final do texto já aproveitamos para anunciar a todos
sobre a nossa vontade em sermos pais:
É mais
um daqueles momentos que vamos guardar pra sempre; nos empenhamos nesses anos
todos para construirmos uma história linda. E não é pela gente, nem tanto por
vocês. Queremos uma história incrível pra contar pro Cadu e pro Mathias, e
vocês todos fazem parte dela! Divirtam-se e muito obrigado por tudo – sorrisos,
palavras e presentes. Vocês foram escolhidos a dedo pela gente, pra festa e pra
vida!
Esse texto me arrepia até hoje, de verdade!
Menos de um ano de casados e decidirmos protocolar a documentação com o
pedido de Habilitação para Adoção. Confesso que estava com a documentação
separada e organizadinha tinha uns meses já; faltava só a coragem de entregar
tudo. Entregamos e foi como se ficássemos grávidos: aquele frio na barriga que
não passa e aquele assunto que se repete o tempo todo. Aproveitei dessa
explosão de palavras que não paravam de surgir e decidi criar o Dois Pais, um blog que funciona às vezes como diário,
outras como informativo, noutras ainda como fluxo de consciência. Logo fomos
chamados para um curso ministrado pelo setor técnico do Fórum onde já nos
deixaram bem à vontade, já que um dos palestrantes era uma família de dois homens
que haviam adotado um menino! Estranhamos só a diferença de idade: éramos muito
mais jovens que todos que estava lá! Bom, depois disso fomos, meses depois,
chamado para a primeira entrevista com a assistente social. Aquela tensão e uma
longa conversa. Longa mesmo: foram mais de três horas de conversa e, ao final,
ela nos pediu o que na hora parecia o fim do mundo. “Vamos dar um tempo para
vocês amadurecerem direitinho a ideia, voltamos a conversar daqui uns quatro,
cinco meses; pode ser? ”. Inevitável aquele sorriso amarelo e um “Ok! ” que
doeu fundo para falar.
Hoje, olhando para trás, vemos que foi a melhor coisa que aconteceu.
Depois disso mergulhamos fundo no universo da Adoção: passamos a ler livros,
blogs, entrevistas, acompanhar matérias de jornais e a frequentar um grupo de
adoção. Além disso assistimos um bando de filmes, choramos litros –
amadurecemos como futuros pais e como casal. O Grupo de Apoio Acolher foi um
capítulo à parte na nossa história. Foi super importante para a gente toda a
pesquisa e estudos que fizemos, mas não tínhamos com quem discutir assuntos e
pegar outros pontos de vista. No Grupo tivemos não só essa abertura ao diálogo,
como acabamos criando laços com todos os participantes. Éramos aproximadamente
seis casais que fizemos, juntos, o tal do Meu Projeto de Adoção. Uma ideia
muito boa: são seis reuniões com o mesmo grupo que abordam diversos temas
relativos à adoção – uma vez por mês. Desde a decisão, escolha das
características, preparação, adaptação, pós adotivo, preconceitos. Tudo foi
muito discutido e, mês a mês, fomos nos apegando também à história dos outros.
Era quase uma maternidade em que um queria saber o peso e altura do filho do
outro.
Voltamos a conversar com a assistente social e éramos outras pessoas:
bem mais seguros e com um bando de discussões e pontos de vista na ponta da
língua. A técnica ficou bem contente em ver nossa empolgação e evolução, logo
agendou a visita à nossa casa e em seguida as conversas com o setor de
Psicologia. Já estávamos vacinados com as primeiras entrevistas, estávamos bem
mais tranquilos para os encontros com a psicóloga – que foram também dois. Logo
finalizamos o processo e quase um ano após o protocolo de toda a documentação,
fomos – enfim – Habilitados! Estávamos em férias viajando pelo Norte do Brasil
quando recebemos a notícia: tratamos de comemorar, choramos, foi inesquecível.
Era como se buscássemos o exame de gravidez confirmando o “positivo”.
Agora era só esperar o telefone tocar. E quem, disse que ansioso aguenta
esperar? MA-GI-NA! Nesse meio tempo fizemos projeto (com mobiliário de lojas de
fast design) para quarto de um filho
pequeno, um pequeno e um grande e dois grandes. Começamos a doar as coisas que
estavam no segundo quarto de casa, deixando o espaço livre para o que viria. Ah,
também não desligava o celular por nada nesse mundo: nada de voos e nem cinema.
A ansiedade foi inevitável: tudo o que acontecia ou o que planejávamos, eu já
ficava com um pé atrás. Nesse meio tempo apareceu casamento fora da cidade,
formatura, etc. Tudo eu respondia um “Vou” com o coração apertado e uma cara
amarela; no fundo torcendo para não poder ir, mas por um ótimo motivo. E
advinha? Foi exatamente o que aconteceu.
Apenas três meses após a Habilitação, enfim o telefone tocou. Eu, que
não era bobo nem nada, já havia salvo na agenda do meu celular TODOS os
telefones da Vara da Infância e Juventude do Fórum Central. Quando tocou eu já
sabia do que se tratava. Pois bem: respirei fundo e atendi. Era uma psicóloga
do Fórum (não a mesma que entrevistou a gente antes) perguntando se as
informações que havíamos preenchido no cadastro estavam atualizadas. Na atual
conjuntura de um bando de demissões em meio à crise, acho que o foco mesmo era
saber se estávamos empregados, bonitinhos. Porque, infelizmente, deve estar
sendo bem comum acontecer esse tipo de contato e os pretendentes à adoção
estarem desempregados e, portanto, desestruturados para o crescimento da
família. Bom, conversamos durante uns trinta minutos: ela primeiro começou
nessa balela de cadastro e logo já abriu a real intenção da ligação – haviam
dois meninos com perfis que o Fórum julgava talvez se adequar ao nosso desejo
de paternidade, apesar de um pouco diferente do perfil que solicitamos no Cadastro
Nacional de Adoção. Falamos sobre descrição deles, um pouco do histórico, de
como se deu o abrigamento deles, tempos, etc. E, por último, a idade do mais
velho (risos)! É, era a única coisa que fugiu ao que havíamos planejado, mas
obviamente não foi empecilho para nada não. Decidimos seguir e conhecer mais
sobre os meninos: agendamos uma conversa no Fórum para o dia seguinte.
Aí já foi aquela ansiedade elevada a um mol. Avisei minha chefe e minha
mãe: o gato subiu no telhado, está chegando a hora! E lá fomos nós logo depois
do almoço, que mal conseguimos engolir de tanta tensão. Conversamos com a
assistente social e com a psicóloga e soubemos mais detalhado sobre o histórico
deles, sobre como era forte o companheirismo entre eles e o quão desgastante
seria a possibilidade de adoção apartada entre eles; estavam apresentando os
meninos única e exclusivamente para adoção conjunta. Quisemos ir mais fundo:
enfim vimos algumas fotos deles. Nos derretemos, na hora. E, de supetão, a
psicóloga nos perguntou: “querem ir visita-los agora? ”. Fiquei branco, verde,
azul. Minha cara ficou tão estranha que ela perguntou em seguida se tínhamos
certeza disso e tal; acalmamos dizendo que não sabia que seria tão rápido
assim. Saímos para beber uma água e espairecer, voltamos para pegar a
autorização para podermos visita-los. E foi assim: saímos direto do Fórum para
o abrigo onde eles moravam, na Zona Sul. No metro estávamos com aquela risada
nervosa de quando a gente está feliz e muito tensos ao mesmo tempo. Explodindo
por dentro, chegamos!
Fomos recebidos pelos funcionários e, de cara, vimos o Davi correndo e
vindo no portão falar algo que não entendemos na hora. Em seguida fomos para
uma salinha de reunião onde nos apresentamos às coordenadoras e entendemos
melhor como seria essa aproximação: visitas diárias, sempre no mesmo horário
(fim da tarde) a fim de criarmos um laço com eles de forma natural, aos poucos.
Começaríamos com essas visitas, em vinte/trinta dias levaríamos para um passeio
rápido, em mais uns dez para um passeio de um dia inteiro, depois eles
dormiriam uma noite em casa e só então estudaríamos a possibilidade de eles
virem para casa de vez. Cronograma totalmente furado: mal sabíamos que em um
mês já teríamos os dois a tira colo, o tempo todo!
Pois o primeiro contato já foi bem divertido: o Allan (mais velho)
correu para nos apresentar a casa, foi muito fofo ele correndo escadas acima na
nossa frente para organizar o banheiro e o quarto dele, pois ele havia acabado
de tomar banho (o chão estava um pouco molhado). Entramos no quarto e ele
estava agachado secando e arrumando tudo.
Descemos e ficamos numa mesa grande, no refeitório, brincando e fazendo
umas atividades de artesanato que eles já estavam fazendo quando chegamos. A
princípio estávamos lá apenas como voluntários, logo demos atenção a todos sem
podermos grudar mais nos dois. E foi uma delícia, tipo paquera mesmo. A gente
ficava brincando com todos eles, descobrindo mais sobre cada um, mas com o
olhar – escondido – fixo nos dois. Peguei o pequeno (que apesar do tamanho
estava bem pesadinho) no colo e, quando estávamos para ir embora o Allan veio
nos perguntar umas coisas:
- Vocês são amigos?
- Sim, somos amigos. – Respondeu o Luciano.
- Ah. – Passado um tempinho – Vocês moram juntos?
- Sim, moramos juntos. Somos casados! – Respondemos.
Ele, que estava com um papel e uns lápis de cor ficou quieto; passado um
tempinho perguntou se podia nos desenhar. Respondemos que sim. E ele fez um
desenho nosso e escreveu nossos nomes embaixo: “LUCIANO & RAFAEL”. Com os
olhos cheinhos d’água nos despedimos de todos e fomos para casa. Engraçado
como, do dia para noite, a gente passou a sentir falta de algo que a gente há
poucas horas nem conhecia. Nem sabia da existência. E essa rotina se repetiu,
por trinta longos dias. Longos pela intensidade e pela ansiedade em levarmos
logo para casa. Não foi fácil equilibrar os pratinhos todos de oito horas de
trabalho, umas quatro horas de visitas, os tempos de deslocamento, as horas no
telefone contando tudo para todos que estavam ansiosos por notícias. Foram dias
muito intensos!
No início falávamos com bastante frequência com a assistente social e
com a psicóloga do Fórum, quase que diariamente. Quando deu uma semana que
estávamos visitando eles – após um bando de emoções como jogar futebol depois
de uns vinte anos sem pisar numa bola, correr, carregar eles para lá e para cá,
estudar juntos, ir à missa e chorar com o Allan sendo coroinha – decidirmos ser
a hora de contarmos para ele que estávamos fazendo as visitas com o intuito de
adotá-los. Calhou de ser bem no dia que o Allan tinha uma reunião de um projeto
incrível chamado Fazendo História, foi bem emocionante. Sentamos os quatro de
indiozinhos no chão da brinquedoteca do abrigo e contamos para eles; o Davi não
deu muita bola, continuou a brincadeira e boa. O Allan ficou envergonhado – foi
a primeira vez que o vimos assim. Primeira vez também que vimos os irmãos
brigarem por algo, o que também é um ótimo sinal! Até então eles eram muito
pacíficos; o Allan acabava fazendo muita coisa só para agradar o caçula. Logo
depois da nossa conversa o Allan teria uma reunião com a voluntária do Fazendo
História para preencherem mais uma página do álbum dele. Pois bem: levamos umas
fotos nossas e da nossa casa para ficarem com ele; algumas delas foram direto para
o álbum, com um recadinho todo carinhoso. Fomos embora derretidinhos e, agora
sim, chorando de verdade.
É incrível como o tempo é muito, mas muito relativo quando a gente está
no meio de um turbilhão desses – as coisas acontecem muito rápido! No dia
seguinte ao que contamos para os meninos que iríamos adotá-los fizemos tudo
como de costume: brincamos um pouco, ajudamos na lição de casa, jantamos com
eles. Na hora de ir embora, a surpresa. Mais que depressa o Allan saiu correndo,
passou na nossa frente e correu para sala da coordenação. Lá cochichou alguma
coisa para as funcionárias do abrigo que correram pedindo para gente esperar um
pouco. Fomos para o refeitório e lá a coordenadora chamou todas as crianças e
funcionários. A pedido do Allan, ela estava contando a todos que a partir
daquela data o Rafael e o Luciano eram não apenas voluntários do abrigo, mas os
pais do Davi e do Allan. Acho que foi dos momentos mais emocionantes da minha
vida na verdade. Não tem palavras que expressem a felicidade e o alívio em
ouvir aquilo. Depois desse choque de fofura nos despedimos de verdade e fomos
embora, não antes de ouvir um tímido “te amo” do Davi.
Passados alguns dias nessa rotina de visitas e pequenos grandes gestos
dos dois, agendamos o nosso primeiro passeio fora do abrigo: uma visita de uma
manhã num parque da região. Estava frio e até chovia um pouco, bem leve. Mas
nada disso tirava o sorriso no rosto e o brilho nos olhos dos quatro. Passeamos
por todo o parque, ouvimos The Beatles
tocado pela orquestra de crianças que estava ensaiando por lá, brincamos
bastante no playground. Uma cena da brincadeira no play chamou nossa atenção:
tinha uma moça que trabalhava no parque olhando para a gente enquanto mexia no
celular. Correndo para lá e para cá, de uma hora para outra o Davi foi lá e deu
um abraço bem forte nela. Do jeito que chegou, saiu. Ela ficou derretida,
apaixonada. Quis tirar foto com ele, agradeceu a gente dizendo que ganhou o
dia. São esses pequenos abraços inesperados que tornam a paternidade algo
único, de verdade.
Com o passeio a ansiedade e a vontade de ficar mais tempo juntos
aumentava a cada dia. Era cada vez mais complicado falar tchau e deixá-los lá.
Eu, que estava tendo aulas de um curso técnico, cheguei ao cúmulo de me
despedir, entrar no metrô a caminho da minha escola e, passadas duas estações,
cair no choro compulsivamente, pegar o sentido contrário e voltar para ficar mais
tempo com eles.
Começamos a conversar sobre prazos com a psicóloga e com a assistente
social, aí fomos percebendo que talvez o prazo fosse mais curto do que
imaginávamos. Aqueles dois meses da previsão inicial já estava sendo encurtado
para um mês ou até menos. Uma sensação de alívio e desespero, na mesma medida!
Um bando de coisas para resolver, preocupações, mas aquela vontade de fazer
tudo isso logo. Para amenizar um pouco essa tensão tivemos uma grata surpresa
no meio do caminho: no fim do mês era o aniversário de três anos do Davi, e o
pessoal do abrigo comentou que havia um grupo chamado Parabéns que organizava
festas de aniversário para os meninos abrigados.
Saímos de casa para festa com o coração apertado; aquele mesmo
sentimento do dia que casamos: uma felicidade enorme, mas também aquela pontada
de responsabilidade e até uma despedida do abrigo. Chegamos e vimos a casa
completamente transformada: onde normalmente estavam as crianças para lá e para
cá, agora tinha um bando de gente boa fazendo de tudo para tornar aquele dia
mágico. Tudo pensado para as crianças, mas também deixou os próprios
voluntários, os funcionários do abrigo e os pais dos dois meninos com o coração
batendo forte, felizes da vida. Foi um dia bem especial, de muita brincadeira,
mas – acima de tudo – uma despedida muito boa para os dois. Foi nesse dia que
eles se acabaram de comer, de correr, de rir. Abraçavam os amigos bem forte,
teve crise de ciúmes, tudo conforme imaginado. Depois de quase doze horas de
corre-corre na festa, viemos para casa. Exaustos, mas com sorriso de orelha a
orelha. O jeito é tomar banho e se apressar a deitar já que no dia seguinte
teria mais um dia bem importante para nova família: eles viriam conhecer a
nossa casa!
Os dois estavam morrendo de ansiedade para conhecer a casa, o quarto, a
região, sentir o cheiro, tudo. Entraram que pareciam um foguete, num pulo
vieram para varanda. De longe já fitaram a piscina, aos berros. Começaram a
exploração do resto da casa, eis que surge um beliche divertido. Sobe. Desce.
Sobe. Desce. Sobe. Desce. Tudo é motivo de brincadeira, qualquer coisa serve para
se divertir. É, a casa que não tinha crianças agora precisava de brinquedos,
ludicidade. Mas, enquanto não tinha, serviu tudo o que tinha na casa mesmo,
eles deram um jeito. Comemos uma bela macarronada, bem típico de família aos
domingos, e corremos para cama dos papais assistir a um filme, bem grudados.
Nenhum dos dois dormiu por culpa da ansiedade, da adrenalina e tudo mais o que
corria na cabecinha deles naquele momento. Passamos algumas horas em casa e no
final da tarde, levamos eles de volta. Ufa! Fim de semana intenso esse.
Mais uma semana de visitas, afagos e carinhos e as técnicas do Fórum nos
ligam perguntando se poderíamos ir até lá na sexta-feira. Disse que havia
programado a emissão da Guarda Definitiva para a segunda-feira seguinte, mas
que por conta da agenda da juíza, teria que adiantar. Corri avisar no trabalho,
liguei para minha mãe tremendo, fui para o banheiro. Na quinta-feira à noite já
preparamos os meninos, avisamos que na sexta à tarde iríamos para o Fórum e de
lá eles já iriam para casa. Por isso precisaríamos de calma deles, além de
ajuda para organizar as roupas para levarmos para casa. Na sexta chegamos mais
cedo no abrigo e levamos algumas malas. Subimos com elas, guardamos tudo com
ajuda das meninas que trabalham no abrigo. Foi um momento bem especial, elas
relembrando o que eles aprontaram quando estavam com cada roupinha, etc.
Descemos e pedimos para os meninos se despedirem de todos. Confesso que estava
muito apegado às crianças, aos funcionários. Foi bem difícil para os pais
também esse momento, fico imaginando para eles. Respiramos fundo, pusemos uma
música bem alta no rádio, e seguimos para o Centro a caminho do Fórum. Chegando
lá fomos recebidos pela psicóloga, conversamos com ela – pela primeira vez os
quatro juntos. Esperamos um tempo e fomos recepcionados pela juíza; tivemos uma
breve conversa e enfim estávamos com a Guarda em mãos!
Viemos para casa, jantamos, botamos o pijaminha novo (obviamente cheia
de fotos) e colocamos eles para dormir. Os primeiros dias foram na mesma pegada
daquela primeira visita: foi uma semana de descobertas pela casa toda, correndo
para lá e para cá. Os pais desesperados com a possibilidade de algum deles se
machucar, cair, bater a cara, qualquer coisa assim. Com o passar dos dias a
gente foi aprendendo a deixar eles descobrirem todo o ambiente, já que
percebemos que eles tinham a mesma reação em outras casas: os primeiros minutos
eram como cachorros farejando tudo e todos. Passado um tempinho ficavam mais
tranquilos.
Depois da primeira semana seguiram dias de descobertas, novos
sentimentos, etc. Tivemos um apoio muito importante da psicóloga do Fórum para
reconhecermos alguns comportamentos e, como ela dizia, ajudarmos eles a darem
nomes aos sentimentos. Ciúmes – eles mal sabiam do que se tratava e, do dia
para noite, passaram a expressar quase que diariamente. Para apimentar ainda
mais a correria dos primeiros dias: moramos no Centro e eles ainda estudavam a
doze quilômetros de casa. Resultado: aproximadamente cinco horas por dia no
trânsito. Força!
Os dias foram se passando e os meninos se acalmando. Legal em ver como
as pessoas que visitavam eles com frequência, desde os primeiros dias, ficavam
sempre impressionadas o quanto eles mudaram. Acredito muito em educação por
exemplo; foi mais ou menos o que aconteceu aqui em casa. Sou bem organizado,
prezo muito pela minha casa. De tanto eles me verem deixando tudo arrumadinho,
limpo e organizado, com o tempo eles foram criando esse senso; hoje o pequeno
não dorme antes de guardar todos os brinquedos, o grande me ajuda em algumas
tarefas de casa. São valores que cultivamos a cada dia. É assim com organização,
mas também com respeito. Não subir nos outros, respeitar a hora de cada um usar
cada coisa da casa, não gritar, agir com calma. Ah, sobre acalmar os ânimos,
aderimos a uma técnica de hipnose por aqui que deu bem certo: toda noite
falamos (repetidas vezes) que é hora de dormir e que no dia seguinte vão
acordar calmos e obedientes. Com o tempo virou uma piada engraçada, o Davi
retruca dizendo que acabamos de dizer! Mas, ainda assim, pede para falarmos,
todo dia. E quando ele acorda assim ele corre para falar: “Papai, acordei calmo
e obediente! ”, esperando um beijo de parabéns. Em meio a esse bando de
novidades, aprendemos algumas lições, como primeiros passos:
§ Nada de televisão pela manhã: eles não
conseguem focar em trocar de roupas, tomar café, escovar os dentes e sair. De
manhã é hora de os papais assistirem jornal!
§ Pelo menos por uns dias, tudo o que fazemos com
o mais novo tem que fazer com o mais velho também, mesmo ele dizendo que sabe e
faz sozinho: desde que descobrimos isso estamos com ele no banho, escovando os
dentes e quando ele está se trocando.
§ Ciúme é normal, ainda mais com uma diferença de
idade tão grande entre eles. O que precisamos é estarmos atentos aos sinais que
eles nos dão e conversarmos com eles SEMPRE. Eles precisam ter confiança na
gente e ter a certeza que o canal da comunicação é totalmente aberto, sem
interferências. Tanto eles quanto a gente vivemos um bando de coisas antes de
nos conhecermos; precisamos dessa abertura para acertarmos os ponteiros e
criarmos nosso jeito de viver.
§ Criatividade na cozinha: não comem cenoura? Tritura
e põe escondidinho. Não comem salada? Chama de outro nome, experimenta um
formato diferente. Mais importante até que a própria comida é a apresentação
(estética e verbal). Deve-se estar muito atento a isso, se deixar só comem
besteira!
§ Preste muita atenção às consultas médicas; o
que os médicos falam eles levam muito a sério. A acupunturista deles falou
sobre a importância de beber muita água (inclusive em jejum), comer bem
diversificado, etc. desde que voltamos desse dia pego no pé deles sempre com
isso e tem dado certo!
A rotina por aqui começa cedo – varia entre seis e meia e oito da manhã.
Primeiro a gente ouve o pequeno cantarolando baixinho com a voz ainda rouca e o
nariz (como sempre) atrapalhando a fala de tão ramelentinho. Minutos depois o
mais velho acorda, entorta a cabeça pra baixo em direção ao irmão predileto e
grita – baixo e rápido: “- Davi! Davi! Davi”. Pronto, era a faísca que
precisava para despertar os dois, e então seguem momentos de fofura e muita
empolgação: são beijos, abraços apertados, carinho na mão até na hora do xixi. Está
aí uma hora que os pais mandam na tal da TV: enquanto o jornal fala lá sozinho,
a gente senta para comer; isso depois do corre que dei para lá e para cá para
organizar tudo enquanto o Luciano luta insistentemente contra a preguiça. Isso
em nada mudou: continuo acordando elétrico e ele, sempre, preguiçoso. É o
signo, é ele, e por isso que eu amo tanto. Todos acordados? Agora sim sentamos
à mesa e tomamos o leitinho, o café ou o que tiver para hoje. A tradição pede o
bigode de leite do Davi e o afeto do Allan com todo mundo. Só então posso dizer
que meu dia começou; a partir daí é tudo novidade.
Um mundo novo cheio de manhas e birras, beijos e abraços. Para quem estava
acostumado com planilhas e panelas, cuidar dos meninos é pura novidade. E eu,
inquieto que sou, estou amando. A licença tem sido o período em que mais tenho
trabalhado: é rotina pauleira das seis da manhã às nove da noite – sem pausa para
um cafezinho, descanso no final de semana, nada disso. É intenso em todos
(todos mesmo) os sentidos. É bem cansativo sim, mas graças a Deus é muito
recompensador, e ela vem rapidinho! Sabe aquela hora que bate o desespero e
você pensa que não vai dar conta? Pois bem, pode apostar que no máximo em cinco
minutos tudo se resolve sozinho, é só você se acalmar. Ainda reflexo de toda a
espera da tal fila de adoção, o que mais cansa acho que é mesmo a ansiedade –
aquele medo quase doentio de não estar fazendo as coisas do jeito certo,
antecipando problemas. As coisas são bem mais simples e se resolvem numa
facilidade que vez ou outra dá até raiva. Poxa, li e estudei tanto para
resolver tão fácil assim?
Adoção é um namoro.
Nos primeiros dias a gente liga de volta, rola aquele frio na barriga, o
coração pula. A gente chega a ouvir o coração batucando fundo de tão intenso. Aí
a gente dorme, acorda, troca de roupa, o tempo fecha, abre de novo e - advinha?
O coração continua bombando, o frio na barriga diminui um pouco, mas o
coração...
E como todo relacionamento, é preciso muita conversa. Como adotamos dois
irmão com idades bem diferentes - 3 e 10 anos - é engraçado porque tendemos
sempre a tratá-los como quase adultos, mesmo o pequeno. Várias vezes me pego
conversando com o caçula e, no meio de uma frase me pergunto: será que ele sabe
o significado dessa palavra que usei agora pouco?
Enfim, com o tempo aprendemos a falar não apenas com palavras. Passados
quatro meses de "namoro" posso dizer tranquilamente que as conversas
e broncas hoje são muito mais silenciosas - com olhares, levantadas de
sobrancelhas e respiração funda - que no início. No começo é tudo festa e não
sabemos bem como lidar com as coisas: aí a gente vai tentando. Primeiro a gente
conversa, depois a gente repete dezessete vezes a mesma coisa. No dia seguinte
repete cinquenta e percebe que (talvez) não esteja surtindo efeito. Aí a gente
fica meio maluco: testa cortar TV, não funciona; corta chocolate, menos ainda. Olho
no olho: esse é o segredo. E é difícil, viu? Porque quando a criança sabe que
estava errada ela simplesmente não quer olhar nos olhos. A vida ensinou para os
nossos que chorando às vezes conseguimos coisas. Mas aprenderam isso longe
daqui, porque aqui essa ceninha não cola, nem com o caçula. Está chorando? Vai
para o canto se acalmar, toma uma ducha gelada, soca o travesseiro: sinta-se em
casa. Quando estiver mais calmo a gente se olha - olho no olho - e conversa. Ufa!
Enfim aprendemos.
E dá frutos toda essa atenção e cuidado no dia-a-dia. É tão bom ver teus
filhos curtindo dias inteiros, um final de semana todinho, em que você precise
só dar uns toques: eles aprenderam o conceito. Educação, isso chama. A gente
ensina o básico e o bom senso; o resto a gente vai moldando juntos. E essa
troca é deliciosa! E não tem preço ver crianças que saíram de um abrigo e mal
sabiam o significado da palavra “sonho” agora cheios de vontades, desejos e
sonhos. Esforçando-se para melhorarem o desempenho/comportamento na escola,
compraram mesmo a ideia de não apenas mudar de vida: agarrar a vida bem forte,
pelos chifres.
Educar é também arquitetar. A gente coloca um bando de tijolos em volta
deles e vai, aos poucos, ensinando-os a empilhar, cimentar, rebocar, pintar e
deixar tudo brilhante. Há quem prefira construir as paredes todinhas para eles:
fujo disso porque odeio criança mimada. Aqui a gente ama na medida certa e
também cobra na mesma proporção: não é por causa de uma bronca que seu filho
não vai olhar para tua cara. Muito pelo contrário: ele vai dar muito mais valor
quando ele perceber o quanto a gente, juntos, criamos uma série de
"regras" que tornaram a vida em casa e lá fora bem mais harmoniosa.
Os pais agradecem. O mundo inteiro agradece.
Oi Rafael e Luciano, que linda historia a de vcs!! Nos tambem passamos por uma experiencia parecida: adotamos duas meninas, a Maria Clara (na epoca com 4 anos) e a Izabela (na epoca com 5 anos).
ResponderExcluirElas vieram quietinhas, desconfiadas, e com o tempo nosso amor e carinho foram quebrando barreiras!! E o sorriso delas foi conquistando nossos coracoes dia apos dia!! Ja vai fazer 1 ano que estamos juntos e formamos uma familia semeada com muito carinho, amor e dedicacao!! Esperamos poder trocarmos experiencias de vida com todos que abriram seus coracoes e adotaram seus pequenos para amar e sermos amados!!!
Bjs dos papais lucio e fabio
Ah, que linda essa história! Bom saber de mais casais que se animem com o desafio de ser pai/mãe, que abraçaram a adoção como forma, sejam bem vindos! :)
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