Direitos (1/4): a família homoafetiva


A família, antes mesmo da criação da igreja ou do Estado e, consequentemente, antes do direito, já existia, em virtude da necessidade que o ser humano tem de viver em aglomerações; seja com a intenção da procriação, seja em função da aversão ao isolamento e para fins de sobrevivência.
Restringindo, agora, à história da família no Brasil, veremos que muitas características são as influências do direito romano e do direito canônico.  O núcleo familiar, característica do direito romano, possuía perfil hierarquizado e patriarcal. A sua formação era integrada por todos os parentes, com o incentivo à procriação, e, por ser uma entidade patrimonializada, seus membros formavam uma força de trabalho. Mais adiante, o direito canônico, sob a égide da igreja católica, detendo o poder delineador da moralidade, passa a classificar o casamento como único meio de formação de família. Em nosso país, ainda sob essa influência, a Constituição de 1824 determina que a formação da família é possível apenas com o casamento religioso, perdurando a visão refletida nesta norma até 1977, com o advento da emenda constitucional nº 9/77, que instituiu o divórcio, quebrando a ideia da família como instituição sacralizada. Já Com a constituição de 1988, atual norma fundamental do nosso ordenamento, o direito de família passa a implementar uma série de transformações, tendo em vista a priorização do individuo em lugar da própria instituição familiar, estabelecendo, por exemplo, a de igualdade entre homem e mulher, passando a proteger todos os membros de modo igualitário e reconhecendo outras formas de constituição da família.
Sob o manto da nova Constituição, a família tem seu campo de abrangência aumentado, passando a reconhecer os vínculos afetivos não submetidos a contratos jurídicos. Assim, segundo o texto constitucional, sobre o novo conceito de família:
“Art. 226 [...]
Parágrafo 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 1988)
Ainda sobre conceito de família, o Estatuto da Criança e do adolescente define:
“Art. 25: Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.” (BRASIL, 1990)
É certo que essa lei, assim como a maioria dos dispositivos legais, precisa de interpretação, por mais claro que seja o seu conteúdo, pois, pode o intérprete analisar o texto normativo superficialmente e entender a norma apenas em seu sentido literal, imediato, sem analisar sua importância histórica, seu contexto e sua finalidade.
Vemos, pois, a divisão em vertentes interpretativas da lei constitucional, no que diz respeito ao conceito de família, restando divergentes as opiniões acerca do reconhecimento da união homoafetiva como instituição familiar, tendo em vista este novo prisma constitucional.
Os argumentos se dividem, basicamente, entre prós e contras. O pensamento que compõe os primeiros vale-se da interpretação teleológica que, segundo Diniz (2005): “é a técnica que objetiva adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais”. Guia-nos, assim, para o entendimento de que se as leis constitucionais foram criadas com a perspectiva de alcançar a felicidade e o bem comum social e que os casais homoafetivos estão submetidos aos mesmos obstáculos sociais que estão os heteroafetivos. Configurando, pois, uma necessária cobertura por tratar dos mesmos direitos. A segunda vertente, por sua vez, interpreta literalmente o texto constitucional, quando disposto no art. 226 que a união estável é reconhecida apenas entre o homem e a mulher, não sendo, portanto, admissível o reconhecimento a casais do mesmo sexo.
À favor do não reconhecimento dos casais homoafetivos como família, haviam dois grupos representados por advogados que compunham a tribuna na votação do STF: a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil e a Associação Eduardo Banks. Ambos se valiam de argumentos religiosos e conservadores, alegando, por exemplo, a degeneração do conceito tradicional de família. A CNBB foi a primeira entidade a se pronunciar de forma contrária sobre a matéria em análise das ações, afirmando que o afeto não poderia ser parâmetro para constituição de união homoafetiva estável.  Para o advogado Hugo José Sarubbi Cysneiros de Oliveira, a pluralidade, garantida na constituição, deveria ter limites. Segundo ele: “o discurso deve ser centrado na Constituição e não em questões filosóficas ou metafísicas”. Ponderou o advogado quando firmava seu posicionamento no fato de constar na constituição a menção expressa a distinção dos sexos.
A Associação Eduardo Banks também entendia como incoerente a inserção dos casais homoafetivos na concepção de família. Em nome da Associação, se pronunciou o advogado Ralph Azolin Lichote:
“Esse julgamento pode ter consequências inimagináveis para todos se dermos um passo errado. Imaginem o fardo de ter que conviver com esta cruz sabendo que, para a maioria do povo brasileiro, Deus criou o casamento quando criou Adão e Eva” (LICHOTE apud JORNAL JURID)
Ainda salientou:
“O que está tentando se fazer aqui hoje é a vontade de uma minoria organizada e barulhenta, desrespeitando milhões de brasileiros [...] Quero finalizar fazendo um brinde de justiça à família brasileira e à vida que só pode ser concebida de acordo com a nossa lei, ou seja, através da união de um homem com uma mulher.”(LICHOTE apud JORNAL JURID)
Há uma série de argumentos que, compartilhados no meio social, também se destinam  ao repúdio a outros tipos de casamento que não entre o homem e a mulher. Entre os consagrados, está o da procriação, ligado a um dogma cristão que defende que o principal objetivo da família é de reproduzir, excluindo a união entre pessoas do mesmo sexo. Compactuando com essa posição, está o da perca dos significados de “pai” e “mãe”, em virtude de, no caso de adoção, de inseminação artificial, barriga de aluguel, a criança teria “pais” ou “mães”, ficando sujeito a supostas debilidades em razão da ausência de referências masculinas ou femininas. Outro receio para o reconhecimento é a publicização de casais homoafetivos como exemplos de família, o que, consequentemente, forçaria as instituições, a escola, por exemplo, a tratar tais famílias com aceitabilidade, podendo, quiçá, “incentivar” os jovens.
Em contrapartida, a vertente que preza pelo reconhecimento dos direitos dos casais homoafetivos, baseiam-se nas garantias constitucionais destinadas aos indivíduos, independendo de sexo, cor, raça, origem etc. Sendo, pois, possível refletir sobre os impactos causados pela classificação do casamento homoafetivo como família.
O casamento, defendido pelos cristãos como base no princípio da procriação, não comunga com a realidade da atual sociedade, pois, deste modo, não casariam os idosos e os inférteis. A seu turno, a falta de um pai ou mãe na criação de uma criança não compromete sua postura, como bem afirmam Ferreira e Chalhub, em sua publicação onde “se confirmou que a criação de crianças por pais homoafetivos não traz danos ao desenvolvimento das crianças”. Dessa forma, reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar não é, pois, um ataque aos valores e tradições nacionais, muito menos significa um fator de influência negativa aos jovens, pelo contrário, a discussão do tema possibilitaria a implementação de uma cultura de repúdio à discriminação.
A favor do reconhecimento dos direitos dos casais homoafetivos, estão os membros do Supremo Tribunal Federal, quando dez de seus onze ministros, votaram a favor da união homoafetiva. A Ministra Carmen Lúcia quando prolata seu voto, enfatiza que os direitos fundamentais independem de inclinação sexual:
“É exato que a referência expressa a homem e mulher garante a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como entidade familiar, com os consectários jurídicos próprios. Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos. Bem ao contrário, o que se extrai dos princípios constitucionais é que todos, homens e mulheres, qualquer que seja a escolha do seu modo de vida, têm os seus direitos fundamentais à liberdade, a ser tratado com igualdade em sua humanidade, ao respeito, à intimidade devidamente garantidos.” (BRASIL)
Também à favor, o Ministro Ayres Britto em relação à pluralidade, argumenta:
“Visto que a heteroafetividade em si não torna os indivíduos superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição do inciso IV do seu art. 3º.” (BRASIL)
Todos esses argumentos e posições tomadas pelos ministros do STF sobre a união homoafetiva, ainda que sólidos, não são lei. E como o Poder Legislativo não se posicionou sobre esse fenômeno social, resta ao Judiciário, diferentemente daquele, se pronunciar, em razão do princípio da inafastabilidade. Tal princípio garante a todos o acesso ao Poder Judiciário, o qual não pode negar a solução a quem lhe solicita a prestação jurisdicional. Não podendo o juiz, mesmo diante de lacuna ou obscuridade da lei, eximir-se de manifestar decisão. Dessa forma, é necessário que o juiz se utilize dos meios de integração da norma jurídica: a analogia, a equidade, a jurisprudência e os princípios gerais do direito. 
Por analogia, no âmbito jurídico, entende-se a operação lógica mediante a qual são suprimidas as omissões da lei, aplicando à apreciação de uma determinada relação jurídica, as normas de direito aplicáveis a casos semelhantes. A equidade é a justiça do caso concreto, toma o juiz a decisão mais justa que não possua norma alguma aplicável, quando flagrante a lacuna ou inexistência de lei. Quanto à jurisprudência, têm-se os julgamentos reiterados dos tribunais nos casos concretos a eles apresentados. Os princípios gerais do direito seriam as ideias basilares do direito que lhe dão coerência, enraizados com o ideal de justiça, cuja função é orientar, não apenas o legislador na produção das normas, como também, o aplicador do direito na impossibilidade de resolver determinado caso por analogia e equidade.
A adoção por casais homoafetivos é um dos exemplos lacunosos em nosso ordenamento. Haja vista ser o tema, de teor constitucional, toda a controvérsia, inevitavelmente, fora encaminhada à apreciação do STF.
Ainda sobre o reconhecimento dos direitos homossexuais, o STF, em 2011, se posicionou, definitivamente, sobre os relacionamentos homoafetivos, mais precisamente, no que diz respeito à conversão de união estável em casamento e à facilitação do casamento homoafetivo. Estendendo a esta nova entidade familiar, os direitos conferidos à união estável, previstas no art. 226, parágrafo 3º da Constituição Federal e no artigo 1723, do código civil.
Com essa visão da necessidade de reconhecimento da conversão das uniões do casamento homoafetivo, afirma o Ministro Ayres Britto, sob a regulação jurídica igualitária:
“Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme a Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.” (BRASIL)
A votação no Supremo Tribunal, sobre a classificação dos casais entre pessoas do mesmo sexo em entidade familiar, foi unânime para o reconhecimento deste. Dessa forma, fora estabelecida uma súmula vinculante, a uniformidade das decisões que tratem do tema.
Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça identificando ainda resistências na aplicação da súmula editada pelo STF, estabelece a obrigatoriedade da celebração de casamentos civis e a conversão da união estável homoafetiva em casamento, através da Resolução 175, em função da divergência em decisões no país, in verbis:
“CONSIDERANDO a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça, tomada no julgamento do Ato Normativo no 0002626-65.2013.2.00.0000, na 169ª Sessão Ordinária, realizada em 14 de maio de 2013;
CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo;
CONSIDERANDO que as referidas decisões foram proferidas com eficácia vinculante à administração pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário;
CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP 1.183.378/RS, decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo;
CONSIDERANDO a competência do Conselho Nacional de Justiça, prevista no art. 103-B, da Constituição Federal de 1988;
RESOLVE:
Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.” (BRASIL, 2013).

REFERÊNCIAS

Ø        Adoção por homossexuais no direito brasileiro
Olga Maria Prazeres, Luis Felix Bogea Fernandes
Ø        Adoção de crianças por casais homoafetivos e o desenvolvimento psicológico dos adotados
Maria José Alves Pinheiro, Pâmela Larissa Viana Ribeiro
Direito de adoção por casais homossexuais e o ideal isonômico constitucional
Ramon Gomes Reis , Phablo Freire

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