Dia 02: morde e assopra

Quando um casal está grávido, é comum dizermos, em tom de brincadeira, pra aproveitarem enquanto aguardam o filho em gestação, pra dormirem, descansarem e fazerem tudo o que têm vontade. Afinal em breve o filho chega e balança todinha a árvore da vida. À crendice popular eu só incluiria um adendo: não importa a idade da criança!
Desde segunda que o sono em nossa casa anda atribulado. Não tem criança chorando nem vindo em nossa cama dizendo estar com medo ou frio. É sintoma do que a Clarice costumava chamar de gravidez de futuro, pura e simples. Quando a gente deita a cabeça no travesseiro e começa a repensar as ultimas vinte e quatro horas (que mais pareceram vinte e quatro dias), passa um filme de acontecimentos e de outras cenas meticulosamente dirigidas e estreladas por: a gente mesmo. Na foto, a gente momentos antes do efeito borboleta.




De segunda pra terça eu capotei, não fiquei muito tempo até dormir não. Tive aula prática na escola na segunda à noite, cheguei bem tarde e destruído. Era o que eu precisava pra conseguir tentar dormir. Já o STU, ficou fritando na cama a noite toda. Imagino a raiva dele comigo: ele lá na maior dificuldade do mundo e eu, teoricamente, descansando. Mas em pouco tempo ele percebeu que meu sono também estava estranho: nos últimos dias passei a cerrar os dentes. Deixei bem claro pra ele: vou sim procurar um dentista, mas tenho dois ótimos motivos pra justificar a nova, digamos, mania.

Dez pras sete da manhã o despertador toca e temos que levantar. Paternidade é vida dupla, tripla; quantas precisar pra garantir aquele brilho nos olhos dos filhos. Entra mais cedo no trabalho, tenta se concentrar e pensar nos problemas de lá; almoça rapidinho pra dar tempo de terminar tudo e conseguir sair cedo pra visitar os pequenos. Aposto que o Marola e o Tsunami também devem passar o dia esperando as 17h30 pros tais “voluntários” chegarem no abrigo e brincarem mais um pouco com eles. Encontramo-nos no trem pra seguirmos juntos, mas antes disso recebemos a ligação da assistente social e psicóloga do Fórum; elas queriam saber como tinha sido o primeiro encontro nosso, as características do abrigo, a receptividade das crianças, etc. Falamos uns vinte minutos e depois seguimos o caminho para o abrigo.

Dia 02: chegamos perto das seis da tarde. Lá fora ventava frio e ainda da porta avistei o Marola pela fresta da janela. A campainha não funcionou; batemos palmas e rapidinho entramos. Logo que entramos no abrigo avistamos o Tsunami vidrado na tela do computador (quando digo vidrado e me refiro a uma criança de menos de três anos, o sentido é bem literal: ele estava abraçando e beijando a tela). Ele assistia Galinha Pintadinha e revezava entre beijos nos personagens que apareciam vez ou outra na tela e encostar freneticamente as caixas de som nos ouvidos como que para entrar na história a qual ele vibrava. E a gente babando em ver aquele sorrisão no rosto, aqueles olhos enormes e amendoados brilhando pra gente que parecia anestesiado vendo aquela cena. Devia estar engraçado para quem visse de fora: ele vidrado na tela/caixas de som >>> a gente vidrado nele vidrado na tela/caixas de som. Foram uns minutos gostosos até nos encaminharmos pra mesa grande de atividades.

Deixamos um pouco o pequeno com as cuidadoras do abrigo e fomos lá interagir com os mais velhos. Estavam, ainda, continuando a atividade que haviam começado no final da tarde de segunda: enrolando páginas de revistas que virariam uma bandeja. Mas, nem tudo são flores, não é mesmo? Vou escrever aqui que é pro Marola ler isso um dia e eu poder dar um croque na cabeça dele por ficar fazendo charminho com a gente: diferente do dia anterior, na terça ele resolveu fazer tipo. Não só ele, pouco depois que fomos pra mesa de atividades o Tsunami chegou cutucando todos e mexendo em tudo, menos na gente. Os dois estavam meio apáticos com a gente nessa hora; confesso que fiquei quebrando a cabeça pensando o porquê disso. Só me veio uma justificativa: eles gostaram pra caramba da nossa visita no dia anterior, se sentiram super à vontade com a gente. Mas deve vir aquela dúvida na cabecinha deles: será que eles estão aqui pra brincar comigo mesmo? Ou é coisa da nossa cabecinha? Pois bem: foram longos minutos enrolando páginas de revista sem nem mesmo prestar atenção ao que fazia – ficava olhando fixamente pra eles tentando um contato visual. E nada! Nem olhavam pra gente.

Puxamos as meninas que trabalham no abrigo pra uma sala pra perguntar um pouco como foi a reação deles depois da nossa visita e sabermos mais detalhadamente alguns pontos como saúde e escola. Elas se mostraram super felizes com nosso interesse neles e também nos deixaram à vontade e à inteira disposição para auxiliar no que fosse necessário nesse período de decisão e adaptação. Ufa, é o que mais precisamos nesse momento, de verdade! Comentou dos últimos exames dos dois e falaram das dificuldades do Marola na escola. Quando estava fora do abrigo ele não havia tido um contato tão efetivo na escola; praticamente começou a estudar somente depois de abrigado, o que obviamente acarreta um certo atraso em relação à série normalmente esperada para a idade dele. Foi bem legal que pouco depois chegou um casal de voluntários que dão aulas de reforço pras crianças no abrigo, e eles salientaram da dificuldade dele em se concentrar. Mas uma vez conquistada a atenção e concentração dele, o menino deslanchava e se mostrava bem inteligente e esperto. Avaliação legal pra pensarmos direitinho quando ele estiver com a gente. Encerramos logo a conversa pra também não perdermos tanto do tempo que temos para ficar com eles.

Logo no corredor já encontramos o Tsunami pra lá e pra cá, às voltas do computador, de novo. Rapidinho a educadora veio e pediu pro maior buscar os álbuns dele e do irmão para eles nos mostrarem. Empolgadíssimo, subiu e desceu, num tiro! Sabe aqueles meninos apáticos e quase birrentos? Sei lá onde foram parar; voltaram uns amores e todo cheios de sorriso pra gente.

Começamos vendo o álbum do pequeno; uma breve história da vida dele desde que foi abrigado, passando por coisas que gosta, que não gosta e um bando de fotos em brincadeiras e com o irmão. A cada página que virava era um grito, um nome que ele chamava pra vim ver, uma tia que ele apontava pelo corredor. Depois fomos pro álbum do Marola; ainda sob gritos empolgadíssimos do Tsunami. Seguindo o mesmo padrão do outro, com um pouco mais de detalhe: muitas fotos dele com o irmão e com os amigos do abrigo, várias e várias historinhas e textos contando um pouco da rotina, dos medos, alegrias e angústias; e o mais tocante: um bando de fotos e textos sobre o primeiro aniversário que ele teve comemoração! Lindo de ver o sorrisão no rosto dele, a alegria que não cabia em curtir os presentes e os amigos dele comemorando juntos. Uma coisa tão simples que a gente nem imagina que esses meninos não têm: festa de aniversário.

Terminamos de ver os álbuns de família e fomos pra sala de TV onde os mais velhos assistiam a um filme qualquer; enquanto isso o Tsunami fazia jus ao apelidinho carinhoso: se jogava sem dó no taco de madeira que até fazia barulho quando o gordinho tocava o chão! E corria de eia e se jogava de novo; cutucava um e se jogava mais uma vez; ia até o final do corredor da casa e voltava com tudo, terminando sempre no chão. Em meio ao bombardeio do mais novo, o Marola ficava ao meu lado assistindo o filme, dando umas risadas do irmão espoleta e me perguntando coisas do dia a dia: se eu jogava futebol, quais jogos eu gostava, se eu fazia as missões do GTA, tudo com muito brilho no olho. Até que o pequeno cansou de se jogar no chão e resolveu subir no sofá, brincar com a minha cabeça e se jogar em cima da gente. Pediu né? Deitamos logo ele no sofá e começamos uma sessão de cócegas, que era pra ver bem aberto e bem visto aquele sorriso mais lindo do mundo. Eu, o STU e o Marola cutucando cada dobrinha do pequeno, e ele se matando na gargalhada. Queria filmar aquilo e passar a vida assistindo: vivi quase trinta anos pra esses quinze segundos de alegria que não cabe em mim. Depois disso já se aproximava a hora do jantar deles; não queríamos atrapalhar. Avisamos que estávamos indo pra casa e que amanhã estaríamos de volta; Marola veio dar um toque de mão. Prontamente corrigi ele: dá logo um abraço! Agachei e dei um abraço mais apertado que no dia anterior. O pequeno brincava no chão; agachei e pedi logo um beijo. Ganhei fácil, fácil, e dos bem molhados!

Saímos de lá em êxtase, de novo. Aquele medo por não estar com medo de nada, aquele amor que a gente nem conhecia um dia desses e dia a dia complica a hora de falar tchau. Desafios da adoção que temos que contornar, não tem jeito mesmo. Segui pra minha aula pra ver se conseguia pensar um pouco em outra coisa e organizar as ideias e o marido foi pra casa dos pais enfim contar tudo isso que tinha acontecido nesses dois dias. Aproveitei o intervalo da aula pra contar também pra minha mãe, e sentir a felicidade da vovó na própria voz e o mesmo choro de emoção a duzentos e trinta quilômetros de distância. Resultado: totalmente sem voz! Pra minha mãe disse que eram as mudanças de temperatura desses dias; que nada, sei bem o que é e estou bem feliz com tudo o que está acontecendo.
O problema do sono? Teoricamente resolvemos; afinal, o que meio Olcadil não resolve?

com carinho,


dois pais.

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