O telefone tocou!

Quem me conhece um pouco mais de perto sabe: eu realmente não gosto de falar ao telefone. Me sinto extremamente desconfortável e fora do meu mundinho; atendo louco pra desligar. Quando começo a soltar uns “então tá bom”, não tenha dúvidas: cansei, desliga logo essa ligação. Pra trazer um pouco mais de graça pra história toda: o que eu estou desde julho esperando? Ah, sim. Uma ligação telefônica.

E às dezesseis horas e quarenta e cinco minutos do dia três de outubro de 2016, o telefone tocou. Sabe quando acontece aquilo pelo qual você está há meses ensaiando? Então. É lógico que não consegui transmitir naturalidade, muito menos esconder a minha ansiedade. Com a voz mais serena do mundo, do outro lado da linha era a psicóloga da Vara da Infância do Fórum Central. Perguntou-me se eu estava disponível pra falar naquela hora, soltei um seco e alto “Sim”. Parecia até que eu estava casando a contragosto de tão natural o tom de voz. Depois veio a explicação da ligação: ela queria saber se havia acontecido algo relevante em nossas vidas desde a Habilitação, que havia acontecido em julho, ou se estávamos na mesma. Com a mesma maturidade da primeira resposta, soltei logo a segunda: “Sim, tudo igual” (já pensando nas milhares de vezes nos últimos tempos que penso que serei demitido e que vai ferrar todo o processo e mimimimimi). E, como ela havia dito que a ligação era pra saber isso, prontamente soltei o meu tradicional “então tá bom” sinalizando bem claramente meu desconforto àquela situação, esperando discernimento e atitude dela pra que desligasse logo esse maldito telefone dessa maldita ligação que eu esperava há tanto tempo. E o que ela fez? Óbvio que o contrário.

Já foi logo estendendo a ligação (afinal é tão gostoso falar no telefone, né?) e, agora sim, contando as reais intenções dela. Disse que estava cuidando de um caso que fugia um pouco aos requisitos que havíamos solicitado no formulário que preenchemos nas entrevistas durante o processo de Habilitação à Adoção, mas que ela acreditava ser compatível ao que buscávamos, por isso a tentativa. Então explicou um pouco o perfil: são dois meninos adoráveis, um deles ultrapassa um pouco a idade que definiram no range, mas são tão adoráveis. Tão carinhosos. Tão fofinhos. E falou mais uns quinze minutos de conversa mole pra, ao final, soltar bem de leve e pra ver se eu nem dava bola frente à enxurrada de adjetivos fofíneos que ela havia dito, a tal incompatibilidade de idade. Pois bem, havíamos preenchido interesse por meninos de zero a quatro anos e aceitávamos um irmão de zero a seis anos. Estávamos falando de dois irmãos de sangue, um com dois anos e onze meses e outro com dez a nos e meio. No mesmo segundo pensei: meu Deus, quase a idade do meu afilhado. No segundo segundo seguinte: nossa, será que respeita os dezesseis anos que temos que ter de diferença de idade entre requisitante e adotado? Na hora eu definitivamente não estava raciocinando. E no terceiro segundo seguinte: por que não? Pedi uns minutos pra eu ligar pro marido e fiquei de retornar em relação ao interesse ou declinando da proposta. Liguei e batata! “Lógico que vamos conhecer eles. Pode agendar!”. Ótimo, pensei. Semana que vem vamos lá conversar com elas então.

Dois minutos e o celular acusa novamente uma ligação vinda do Fórum João Mendes. No mesmo instante um rinoceronte dava cambalhotas no meu estômago; engoli seco e atendi. Atendi e prontamente falei do interesse que tínhamos que era pra acabar com aquela ligação logo. Coo pode alguém gostar de falar ao telefone? Credo! Só de ouvir ele tocando ou vibrando já me bate um frio na espinha. “Ok, respondeu ela. Espero vocês então amanhã às treze e trinta, combinado?”. Esse negócio tá indo rápido demais, pensei. Seguiu o resto da tarde e a primeira noite mal dormida. E olha que eu tive aula à noite e cheguei em casa depois das onze e meia. Nem assim dormi como todos os dias até a noite anterior. Tá vendo só? Foi o telefone tocar que a coisa degringolou. Mas calma, tem mais.

Dia seguinte trabalhamos pela manhã e um pouco antes do almoço seguimos a caminho do Centro. Paramos pra comer um tradicional bauru no Ponto Chic do Largo do Paissandu e então fomos pra Praça João Mendes. Bem menos ansioso que nas vezes em que tínhamos entrevista, mas sem saber direito o que seria da minha vida quando saísse daquele prédio. Ainda bem que estava consciente que o furacão estava por vir.

Chegamos pontualmente e esperamos um pouco a assistente social e a psicóloga se organizarem até nos chamarem pra entrar no confessionário (uma salinha estreita e sem qualquer tratamento acústico em que todos à nossa volta mundo ouvem e são ouvidos). E começaram perguntando justamente o que eu imaginava que não teria que responder: “o que vocês querem saber?”. Poxa, eu pensava, elas são profissionais. Vão saber o que devo saber a respeito deles ou não. Ainda bem que eu havia escrito um check-list básico do que perguntar. E começamos a falar um pouco da história deles, falamos um pouco sobre a gente também e o assunto se estendeu até sobre educação, adaptação e convivência pós adoção. Chegamos ao final dessa nossa conversa sabendo que: eram dois meninos, um de dez anos (vou chamar carinhosamente de Marola) e meio e outro de quase três anos (que vou chamar carinhosamente de Tsunami), irmãos de sangue que viviam em prédios invadidos de São Paulo. De pais diferentes, não tinham contato com eles e viviam apenas com a mãe. Foram abrigados em agosto de 2015, dias depois que protocolamos o nosso pedido de habilitação, após a denúncia de um vizinho da família, com medo que as crianças sofressem algum tipo de agressão já que viviam pelas ruas. Em resumo: estranhamente, absolutamente nada do que elas disseram nos assustou ou nos deixou com medo. Tão pouco nos deixou inseguro em relação à decisão que havíamos tomado em dar continuidade e conhecer as crianças. Ela comentou então qual seria o procedimento: ela iria solicitar uma autorização da juíza e, em paralelo, agendar com o abrigo o melhor horário pra fazermos a primeira visita. A partir de então organizaríamos a agenda para criarmos uma rotina de visitas com as crianças direto com as meninas do abrigo em que eles moram. Já está bom de emoções pra um dia só, né? Pois não, manda mais que tá pouco!

E quando a gente achava que já tinha ouvido novidade demais, passado nervoso demais e estávamos seguros demais, as técnicas lançam pra gente, na lata: “não querem ir agora?”. Fiz uma cara de espanto. Não esperava tudo tão rápido. E outra: ela falou todo um passo a passo que teria que acontecer; na minha cabeça isso duraria uma ou duas semanas. Mas não, pediram pra esperarmos na recepção e saíram correndo atrás da juíza pra agilizar a documentação necessária. Em meia hora voltaram com a autorização na mão e com os contatos das técnicas do tal do abrigo. Resultado: cinco e meia da tarde estávamos nós dois apertando a campainha da casa.

Numa rua bem arborizada na zona Sul de São Paulo, chegamos enfim ao endereço deles. Apertamos a campainha e fomos recebidos pelas funcionárias da casa, que já nos aguardavam. No caminho pra sala que elas nos encaminhavam, um alemãozinho olhou pra gente e gritou: “são eles que vieram brincar com a gente?”. Já na sala elas nos passaram mais um pouco do histórico e comportamento deles, situação de saúde, escola, etc. Elas ficaram encantadas em quão felizes estávamos e ansiosos pra ver logo eles. Enquanto falávamos uma das funcionárias da casa bateu na porta pedindo ajuda com alguma coisa com um menino pequeno nos braços; e numa fresta de pouco mais de dez centímetros de porta aberta eu não tinha a menor dúvida: era o Tsunami. Batata! Assim que fechou a porta elas falaram e então seguimos em direção à casa. Logo que entramos cumprimentamos quem? Sim, o Marola que estava afoito com a visita, correndo pra lá e pra cá com o alemãozinho que havia gritado logo que entramos. E a funcionária nos acompanhou visitando a casa toda, e pediu pro Marola fazer as honras da casa e apresentar tudo pra gente. Claramente nervoso e querendo impressionar os novos amigos, ele nos encaminhou a todos os ambientes do térreo; logo começamos a subir as escadas, mas ele saiu em disparada. Quando chegamos no quarto, que depois iríamos descobrir que era o dele, tava lá o menino agachado secando um pouco o chão do banheiro, que estava um pouco bagunçado porque ele havia acabado de tomar banho. Um fofo! Então apresentou o resto do piso superior que o Lúdico, um espaço cheio de brinquedos e espaço pras crianças se divertirem.

Terminada a visita sentamos todos numa mesa perto da entrada onde algumas crianças e umas funcionárias da casa já faziam uma atividade: estavam enrolando tubinhos de papel que, depois de enrolados, virariam uma cesta multiuso! Todo mundo trabalhando e ajudando em cada etapa, jogando papo fora. Um clima super gostoso, bem mais ameno e tranquilo do que qualquer ideia que eu tinha de abrigos por aí. Ao meu lado estava uma funcionária do abrigo com o Tsunami no colo, fazendo jus ao apelidinho fofo que eu dei pra ele: canetão na mão e tudo o que estava ao alcance dele, ele rabiscava. Desenhou peixinho, carro, casa, sol; até que ele me pediu pra desenhar um leão. Um leão? Desculpa, não consegui. Pedi ajuda pro marido e deu certo! Enquanto isso o Marola ensinava a gente calmamente a preparar o papel como a “receita” pedia. Atento a tudo o que a gente falava e fazia, estava o tempo todo lá do nosso lado o fofinho do Marola. Uma hora depois o ranhentinho do Tsunami sumiu, aproveitaram e subiram com ele pra dar banho. Depois de brincar um pouco no celular e uns minutos de silêncio, o Marola soltou uma pergunta pra gente: “Vocês viajam pra onde?” (depois fomos entender que se referia a um amiguinho de abrigo que havia se mudado para a França após um caso de adoção tardia por estrangeiros). Respondemos, meio sem entender ainda, que íamos pro Centro. Ele entendeu e perguntou de novo: “Vocês moram juntos?”. Respondemos que sim, ele logo perguntou se éramos irmãos. Corrigimos dizendo que éramos casados. Três segundos de silêncio e ele correu pra minha frente (e do lado do meu marido) e perguntou se podia desenhar a gente. Respondemos que sim, e ele fez esse desenho lindo.


Sem dizer pra eles nossa real intenção, fomos embora como se fôssemos meros voluntários que resolveram passear ontem à noite no abrigo. Mal sabem que daqui a pouco a campainha lá vai tocar de novo, mas aí é outra história. 

com carinho,


dois pais.

Comentários

  1. História incrível! Muito feliz por conhecer um pouquinho de vocês. É inspirador pra mim e pra muitas outras pessoas, parabéns por todas estas conquistas!

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    1. Obrigado, Elias. Sempre bem vindo por aqui pra ouvir um pouco mais de histórias :)

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