(Mãe
só há uma, 2016)
Diretor:
Anna Muylaert
Mãe
Só Há Uma é uma quebra bem vinda na filmografia de Anna Muylaert. Revelada no
espirituoso curta-metragem A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti (1995) e
no excelente longa Durval Discos (2002), a diretora paulistana conseguiu manter
uma certa unidade temática e formal em seus roteiros e filmes, sempre com
tramas que se entrelaçam ao longo da projeção, muitos diálogos e fortes doses
de humanismo, às vezes completado por sátira, metáfora ou crítica social.
Com
o sucesso de Que Horas Ela Volta? (2015), olhares antes alheios caíram sobre a
cineasta, assim como um turbilhão de críticas negativas em relação à forma como
ela apresentou os diferentes níveis sociais naquele filme. Talvez as mesmas
pessoas esperassem que Mãe Só Há Uma (2016) trilhasse o mesmo caminho; e até
quem havia gostado muito de Que Horas Ela Volta? esperasse um roteiro com o
mesmo destaque ou forma, em tese, a maneira mais recorrente de a diretora
trabalhar. Pois bem. Ambos os lados foram positivamente frustrados aqui.
Mãe
Só Há Uma tem um roteiro — escrito pela própria Muylaert — livremente inspirado
no caso real do sequestro de um garoto (o Pedrinho, roubado de uma maternidade
em Brasília, em 1986) e acompanha Pierre, que lida não apenas com essa
descoberta de outra família, mas também com a sua própria sexualidade e
identidade de gênero, para ele, em estado de experimentação. É verdade que
existe uma linha de “visão de classes” aqui, mas ela é um detalhe de construção
para os dois Universos em que o personagem estará inserido, buscando em cada um
deles uma forma de manifestar-se como verdadeiramente é.
Um
dos grandes trunfos do filme é adotar uma narrativa ligada a Pierre e, a partir
dela, desenvolver outros aspectos importantes, quase como se estivéssemos
falando de uma outra história, organicamente inserida na linha principal.
Perceba que o roteiro fala sobre o roubo de uma criança que é encontrada 17
anos depois pelos seus pais biológicos (para ironizar e validar o título,
Muylaert inteligentemente escalou a mesma atriz, Daniela Nefussi, para viver as
duas mães — e que trabalho esplêndido e tocante a atriz realiza!). Mas o filme
também nos fala de um jovem descobrindo sua forma de expressão de gênero, sua
libido, seus afetos e raízes fraternas. E também nos fala sobre adaptação em
três níveis: da família que fica, da família de reencontra o filho e do filho
que é desligado de seu primeiro núcleo e conectado ao segundo.
O
ator Naomi Nero entrega um trabalho perfeitamente adequado ao que o seu
personagem, Pierre, necessita ter. E veja que este não é um personagem fácil de
se construir dramaturgicamente. Daniela Nefussi e Matheus Nachtergaele estão
excelentes em seus papéis, especialmente Daniela; e o jovem Daniel Botelho,
irmão de Pierre, também está ótimo em cena. O fio que se perde mais
abruptamente nesse novelo é o da irmã do protagonista, Jaqueline (Lais Dias); e
o menos modelado, por ser composto de cenas frágeis ou pouco importantes para o
personagem e a história, são a escola e a banda, embora o que vemos no último
ensaio do grupo acabe valendo para melhor entendermos Pierre. Esses aspectos da
vida social do rapaz servem de plano de fundo, mas, devido ao toque pessoal da
obra, acabam parecendo desengonçados diante de coisas melhor representadas
tanto no roteiro, quanto na direção e através da fotografia livre, de câmera na
mão, assinada por Barbara Alvarez, a mesma de Que Horas Ela Volta?
Mesmo
tendo um custo para o filme, esse tratamento não tira a excelente formulação de
Anna Muylaert para um conflito jovem que ocorre em diferentes faces. A busca
pela autenticidade do protagonista bate de frente com a normatividade de sua
família biológica, que tampouco é desprezada pela diretora. Sem demonizar
ninguém, mostrando os muitos “Ser”, “Querer Ser” e “Querer Para Si” que envolve
todos os personagens, ela nos mostra o sofrimento dos que recebem um jovem com
gostos e comportamento diferentes do que estão acostumados. Curioso é que o
amor da família biológica se revela quando, mesmo diante de um estranhamento de
papéis sociais, convive com Pierre do jeito que ele quer ser, de vestido e
tudo. Mas nada é tão simples, porque existem duas histórias cheias de
sentimento em conflito, ambos aqui feridos pela frustração de amar o outro mas
cobrar dele algo que não é bem recebido, o dilema básico entre pais e filhos ao
longo do processo de educação. Sem amarras e sem floreios, Muylaert representa
com grande autenticidade esses dois lados.
Assim
como a inquietude sugerida pela fotografia e pela montagem, que alterna entre
interrupções secas e ligações mais suaves entre planos relativamente longos e
belamente capturados (as cenas dos poucos planos gerais), Pierre atravessa um
vendaval de mudanças externas e internas, a maior delas, quando seu nome é
“mudado”. É quase como um ritual de passagem de uma família para outra. Invocar
a pessoa “Pierre” ou “Felipe” passa a ter, na segunda parte do filme, um
significado diferente em tela. A essência e a substância da manifestação
individual do jovem são afetadas e talvez isso sirva para a aceleração de um
processo muito particular que estava em progresso para ele. Pelo nome se
identifica, se evoca, se apresenta e se cria algo. Não é à toa que após o
primeiro encontro de Pierre com sua família biológica — há um humor sutil e
amargo nessa cena — ele se torne ainda mais calado, mais dado a suspiros e a
experimentos com seu exterior. Isso, sem contar o toque freudiano sugerido pelo
roteiro nessa dança das mães.
Mãe
Só Há Uma é um filme sobre construções, apego e desapego. Com um enredo forte e
temática que aglutina as permissões e expressões da juventude nos anos 2010,
vemos Anna Muylaert falar sobre encontrar-se e perder-se dentro e si e junto
aos seus. Este é um filme sobre ter motivos para sentir ser único, independente
das adversidades. Poucas vezes um longa brasileiro conseguiu representar o fio
invisível que une irmãos (e a família) tão bem e de forma tão complexa como Mãe
Só Há Uma. No fim de tudo, temos aqui um exercício sobre o amor e tudo o que se
enfrenta para poder enxergá-lo, valorizá-lo e recebê-lo de volta. A última cena
do filme representa isso de maneira sublime. E, melhor ainda, sem dizer nada.
Fonte: http://www.planocritico.com/critica-mae-so-ha-uma/ (Acesso
em 30/08/2016).
Comentários
Postar um comentário