Fonte: Revista São Paulo - Folha (Laura Lewer - 05/08/2018)
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Eis uma sequência de cenas facilmente imagináveis: o celular com mais aplicativos de personagens infantis do que de pagamento de boletos, um curso de banho em bebês no hospital, uma conversa interrompida por um "peraí, filha, o papai tá trabalhando", um pequeno dedo apontado para a batina de um padre seguido da inocente comprovação de uma ideia –"Viu? Menino pode usar roupa de menina, sim".
E outras cenas menos relacionáveis, que se encaixam no clichê do "só quem tem sabe": um ser chegando ao mundo e virando a vida do avesso, puxões de orelha vindos de uma criança, a responsabilidade de educar alguém com os valores revistos e renovados.
Todos esses recortes têm cinco paulistanos e seus filhos como autores e protagonistas. São pais que levam as mudanças e debates do mundo para a criação dos filhos e também aprendem diariamente com eles. Pelo menos para os entrevistados desta edição da sãopaulo, a mensagem é clara: a paternidade está em transformação.
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Leia abaixo os depoimentos de Marcelo Tas, Henrique Fogaça, Antonio Prata, Rael e Facundo Guerra.
A Olivia não chorou quando nasceu. Era muito quietinha, e isso foi uma questão no primeiro momento: será que ela tem algum problema? A gente passou os três primeiros anos investigando e não descobriu nada. Minha primeira experiência como pai foi essa, a de ter uma filha com uma síndrome rara e também a de gratidão por poder cuidar de alguém que renova os meus valores de vida. E ela é só amor. Um mundo diferente.
A gente aprende a valorizar as coisas pequenas quando tem uma pessoa especial dentro de casa. Os acontecimentos do dia a dia, um sorriso, um abraço, um gesto, eu falar com ela e ela responder com uma risadinha. Com a situação da Olivia, fiquei mais sensível, mudei as coisas que penso.Entrei no projeto Chefs Especiais [trabalho gastronômico para pessoas com síndrome de down], da Simone Lozano e do Márcio Berti. Eles me convidaram para dar uma aula e já tem dez anos que estou lá.
O João e a Maria Letícia são saudáveis. A experiência com eles é a de poder ensinar, mostrar o que importa na vida: o contato com a família, o entendimento, o amor, a aceitação. Porque filho é uma coisa para sempre. É poder passar o que tive e aprendi da melhor forma para que eles sejam pessoas felizes, dedicadas, com educação e valores.
Antonio Prata
Escritor e colunista da Folha, 40 anos, morador de Higienópolis, e pai de Olivia, 5, e Daniel, 3
Não é um amor à primeira vista. É esquisito. Você olha pela primeira vez e fala: 'Caramba, é a minha filha e não conheço ela ainda'. É um amor que vai sendo criado até você ficar apaixonado. Ninguém fala que é tão difícil, pega mal dizer que você não tá dando conta. E quando nasce, você percebe que o seu tempo não é mais seu.
Você se vê transformado em pai e vai descobrindo que tipo de pai é. Entende o Crocs, a pochete, uma esculhambação. A casa se transforma, fica dominada pelos objetos, pelos riscos no sofá. Os símbolos vão entrando, a Peppa Pig, a Galinha Pintadinha. Eu achava que jamais ia dar um iPad para uma criança. E aí você tá com ela chorando no aeroporto, desesperado para que ela goste daquele filme, sabe? São essas duas coisas sempre em briga: os ideais da paternidade e as urgências momentâneas.
Eu tava falando com a minha avó de 87 anos e ela me disse 'Antonio, na minha geração, não havia nenhuma noção de que o homem deveria participar da criação dos filhos'. Ele seguia para a maternidade, olhava e ia embora tomar uísque. Nunca dava um banho. Nunca trocava uma fralda. Agora, ele foi chamado para frente de batalha. O pai presente era um elogio; hoje, é uma obrigação. É uma surpresa e, no fim, é uma sorte. E falo isso para você agora, numa sexta-feira, às 19h. Às 3h30, quando eles começarem a chorar...
Antes do Martin, quando era eu por mim, eu falava: 'Ah, a vida é assim mesmo, eu me viro'. Agora é 'Não, a gente tem que mudar esse mundo porque esses moleques não podem crescer nessa atmosfera'.
Aprendo muito com ele, com essa pureza de criança. A gente não fala de religião em casa, deixa ele escolher as coisas, e um dia ele disse: 'Eu tava numa outra casa e não tava feliz. Aí papai do céu me mostrou essa aqui, com você, seu cabelo de corda e a mamãe. Vim pra cá e tô feliz'. Pensei 'mano, será que ele teve a opção de escolher isso?'
Meu filho não passou por um terço do sofrimento que passei, e às vezes, tento mostrar que a vida não é fácil. Levo na quebrada onde cresci [no Jardim Iporanga, zona sul] para ele entender que as casas são diferentes, o comportamento é diferente. E ele curte, pede para ir.
O nome dele é Martin por causa do Luther King e da sonoridade. Ele percebe que é o único preto da escola e diz que é da cor do papai, tem essa brisa inocente. Então eu vou tentando falar aos poucos sobre isso. Tento trocar essa ideia de que todo mundo é igual, porque ele tem que aprender a conviver com a diversidade. De raça, gênero, sexualidade, tudo. Acho que, quando ele for adolescente, isso vai ser menos distante do que foi para mim, porque na escola dos anos 1990 não se falava nem de racismo. A gente aprendia da pior maneira, com as pessoas falando.
É um trabalho árduo, né? Criar uma pessoa legal, que possa contribuir para o mundo, ajudar as pessoas, entender o sofrimento e ter empatia. Acho que a missão é meio essa. Tenho que criar um moleque da hora.
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Eis uma sequência de cenas facilmente imagináveis: o celular com mais aplicativos de personagens infantis do que de pagamento de boletos, um curso de banho em bebês no hospital, uma conversa interrompida por um "peraí, filha, o papai tá trabalhando", um pequeno dedo apontado para a batina de um padre seguido da inocente comprovação de uma ideia –"Viu? Menino pode usar roupa de menina, sim".
E outras cenas menos relacionáveis, que se encaixam no clichê do "só quem tem sabe": um ser chegando ao mundo e virando a vida do avesso, puxões de orelha vindos de uma criança, a responsabilidade de educar alguém com os valores revistos e renovados.
Todos esses recortes têm cinco paulistanos e seus filhos como autores e protagonistas. São pais que levam as mudanças e debates do mundo para a criação dos filhos e também aprendem diariamente com eles. Pelo menos para os entrevistados desta edição da sãopaulo, a mensagem é clara: a paternidade está em transformação.
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Leia abaixo os depoimentos de Marcelo Tas, Henrique Fogaça, Antonio Prata, Rael e Facundo Guerra.
Marcelo Taz
Apresentador, 58 anos, morador do Jardim Paulistano, pai de Luc, 29, Miguel, 17, e Clarice, 13
É como ligar outro relógio. Enquanto você não tem filhos, ele não é tão relevante assim. Você pode trocar de cidade, chutar o balde, mudar tudo. Ser pai dispara um cronômetro que vai estar com você para o resto da vida, e as coisas que acontecem com os filhos passam a te transformar também.
O Luc sempre foi alguém que me trouxe desafios. Ainda na adolescência, ele se assumiu bissexual. A transexualidade não teve uma data específica mas, fazendo um retrospecto, lembrei que, quando criança, ele já tinha uma identificação com o gênero masculino. Ele se fantasiava de soldado e não gostava de vestidos, por exemplo.
Foi uma nova surpresa quando ele trouxe isso. Resolvi estudar para entender que não tem nada a ver com sexualidade, e, sim, com identidade. Percebi o quanto essa questão é central, a fundamental importância que a identidade tem na maneira que a gente enxerga o mundo e o mundo nos enxerga.
A Clarice e o Miguel me ajudaram muito. Na fase mais dramática, quando fui apoiá-lo a mudar o nome e contar para a família, a Clarice falou: 'O Luc é a mesma pessoa. Em vez de falar ela, nós vamos falar ele'. É assim mesmo, simples. E a gente faz um terremoto, deputados entram em discussões, surge o preconceito. Pessoas são assassinadas por causa de algo muito particular, algo que não deveria ser tratado com violência.
Comecei a receber mensagens muito fortes de filhos que apanham, que vivem situações quase que de prisão. E eu me sinto muito grato ao Luc porque ele me ensinou. Eu era ignorante, e a ignorância acompanha o preconceito. Todo pai tem que apoiar com afeto, procurar se colocar no lugar, ouvir, tentar entender a situação sem ser omisso.
Não foi fácil na família, mas teve uma coisa muito amorosa, que despertou uma transformação em todo mundo. Resolvi contar pessoalmente para os meus pais, que moram em Ituverava [interior de SP]. Meu pai, depois de ouvir em silêncio, contou que eles estavam com uma cozinheira nova. Ele disse: 'A Luciana é ótima, mas o pessoal descobriu que ela é travesti e queria que a gente a demitisse. Eu pensei, ela chega no horário, cozinha bem, é educada, pra que eu vou demitir? Parece que Deus mandou a Luciana pra gente receber o Luc.' Foi outra questão entre pai e filho, e percebi nele esse amor, essa generosidade.
O maior presente que um pai pode ter é a conexão com os filhos. Acho que a maior dificuldade é manter essa conexão num mundo assustador. Tem muito pai que olha para qualquer mudança e simplesmente se afasta. Isso é trágico, porque quando ele quiser retomar, talvez seja tarde demais. O filho pode já ter ido –depois de uma idade, eles vão mesmo. E esse é um tempo que não tem como se ganhar de novo.
Henrique Fogaça
Chef, 44 anos, morador do Jardim Paulista, pai de Olivia, 12, João, 10, e Maria Letícia, 2A Olivia não chorou quando nasceu. Era muito quietinha, e isso foi uma questão no primeiro momento: será que ela tem algum problema? A gente passou os três primeiros anos investigando e não descobriu nada. Minha primeira experiência como pai foi essa, a de ter uma filha com uma síndrome rara e também a de gratidão por poder cuidar de alguém que renova os meus valores de vida. E ela é só amor. Um mundo diferente.
A gente aprende a valorizar as coisas pequenas quando tem uma pessoa especial dentro de casa. Os acontecimentos do dia a dia, um sorriso, um abraço, um gesto, eu falar com ela e ela responder com uma risadinha. Com a situação da Olivia, fiquei mais sensível, mudei as coisas que penso.Entrei no projeto Chefs Especiais [trabalho gastronômico para pessoas com síndrome de down], da Simone Lozano e do Márcio Berti. Eles me convidaram para dar uma aula e já tem dez anos que estou lá.
O João e a Maria Letícia são saudáveis. A experiência com eles é a de poder ensinar, mostrar o que importa na vida: o contato com a família, o entendimento, o amor, a aceitação. Porque filho é uma coisa para sempre. É poder passar o que tive e aprendi da melhor forma para que eles sejam pessoas felizes, dedicadas, com educação e valores.
Antonio Prata
Escritor e colunista da Folha, 40 anos, morador de Higienópolis, e pai de Olivia, 5, e Daniel, 3
Não é um amor à primeira vista. É esquisito. Você olha pela primeira vez e fala: 'Caramba, é a minha filha e não conheço ela ainda'. É um amor que vai sendo criado até você ficar apaixonado. Ninguém fala que é tão difícil, pega mal dizer que você não tá dando conta. E quando nasce, você percebe que o seu tempo não é mais seu.
Você se vê transformado em pai e vai descobrindo que tipo de pai é. Entende o Crocs, a pochete, uma esculhambação. A casa se transforma, fica dominada pelos objetos, pelos riscos no sofá. Os símbolos vão entrando, a Peppa Pig, a Galinha Pintadinha. Eu achava que jamais ia dar um iPad para uma criança. E aí você tá com ela chorando no aeroporto, desesperado para que ela goste daquele filme, sabe? São essas duas coisas sempre em briga: os ideais da paternidade e as urgências momentâneas.
Eu tava falando com a minha avó de 87 anos e ela me disse 'Antonio, na minha geração, não havia nenhuma noção de que o homem deveria participar da criação dos filhos'. Ele seguia para a maternidade, olhava e ia embora tomar uísque. Nunca dava um banho. Nunca trocava uma fralda. Agora, ele foi chamado para frente de batalha. O pai presente era um elogio; hoje, é uma obrigação. É uma surpresa e, no fim, é uma sorte. E falo isso para você agora, numa sexta-feira, às 19h. Às 3h30, quando eles começarem a chorar...
Rael
Rapper, 35 anos, morador da Vila Mariana, pai de Martin, 6Antes do Martin, quando era eu por mim, eu falava: 'Ah, a vida é assim mesmo, eu me viro'. Agora é 'Não, a gente tem que mudar esse mundo porque esses moleques não podem crescer nessa atmosfera'.
Aprendo muito com ele, com essa pureza de criança. A gente não fala de religião em casa, deixa ele escolher as coisas, e um dia ele disse: 'Eu tava numa outra casa e não tava feliz. Aí papai do céu me mostrou essa aqui, com você, seu cabelo de corda e a mamãe. Vim pra cá e tô feliz'. Pensei 'mano, será que ele teve a opção de escolher isso?'
Meu filho não passou por um terço do sofrimento que passei, e às vezes, tento mostrar que a vida não é fácil. Levo na quebrada onde cresci [no Jardim Iporanga, zona sul] para ele entender que as casas são diferentes, o comportamento é diferente. E ele curte, pede para ir.
O nome dele é Martin por causa do Luther King e da sonoridade. Ele percebe que é o único preto da escola e diz que é da cor do papai, tem essa brisa inocente. Então eu vou tentando falar aos poucos sobre isso. Tento trocar essa ideia de que todo mundo é igual, porque ele tem que aprender a conviver com a diversidade. De raça, gênero, sexualidade, tudo. Acho que, quando ele for adolescente, isso vai ser menos distante do que foi para mim, porque na escola dos anos 1990 não se falava nem de racismo. A gente aprendia da pior maneira, com as pessoas falando.
É um trabalho árduo, né? Criar uma pessoa legal, que possa contribuir para o mundo, ajudar as pessoas, entender o sofrimento e ter empatia. Acho que a missão é meio essa. Tenho que criar um moleque da hora.
Facundo Guerra
Empresário, 44 anos, morador do Pacaembu, pai de Pina, 6
A gente vive num país onde a paternidade é facultativa, e é muito triste se dar conta disso. São dezenas de milhares de pessoas que não têm o nome do pai no RG, então eu acho que, no Dia dos Pais, a gente deveria fazer um pouco de luto. Porque, para muitas crianças, é o segundo Dia das Mães no ano.
O papel de pai é o mais importante que desenvolvo. A Pina representou uma chance de não deixar que os meus preconceitos se perpetuem, de me esforçar para que ela seja uma pessoa muito melhor do que eu consegui ser até hoje. Porque, intrínseca e socialmente, sou machista, homofóbico e racista em algum nível. E tenho que combater isso todos os dias.
Com ela, percebi que ninguém 'acontece' de ser racista. Por trás de todo racista, homofóbico, machista, fascista, há um pai preguiçoso. Que tipo de exemplo familiar essas pessoas tiveram para reproduzir esses preconceitos? É uma responsabilidade gigantesca, porque os pais querem se ver refletidos nos filhos. E eu não tenho isso. Se eu puder dar um exemplo, que bom. Mas que ela não carregue nada de mim, porque também tenho muitos atributos negativos.
Tenho essa relação tão íntima e verdadeira com ela, que é completamente desprovida de interesse, que é inquebrantável, fluida. E não é uma relação hierarquizada a ponto de eu ser uma autoridade por impor, mas porque prometi quando ela nasceu –e falo até hoje– que, enquanto ela não conseguir se proteger do mundo e de si mesma, vou fazer isso. Mas que preciso que ela comece a se proteger sozinha, que ela se transforme num ser humano independente.
E recebo puxão de orelha dela o tempo todo. Ela diz umas coisas que eu falo 'Filha, você tem toda a razão'. Por isso digo que é uma nova chance. Não parto do pressuposto de que ela não tenha nada para me ensinar, porque ela me ensina para caramba todos os dias. É muito rica essa troca.
O mundo era diferente quando cresci, e a gente está vivendo numa situação mais limítrofe hoje, então não dá para aproveitar muito da criação que tive. Tem que começar do zero mesmo e repensar gênero, desigualdade social. Imbuí nela essa consciência de que ela tem muito mais do que os outros, de que ela tem que agradecer e entender que o privilégio que ela teve a sorte de ter precisa ser redistribuído.
Falo que os humanos são diferentes. Que a diferença é bonita. Que você pode ter nascido de um jeito, mas ter se transformado, ter outro gênero, outro amor. Que embaixo da pele todo mundo é igual, que ninguém pode ser julgado pela aparência e que todo mundo pode ser do jeito como quer ser.
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